quarta-feira, janeiro 24, 2007

Jean-Paul Sartre e A Idade da Razão

Mathieu olhou o relógio. “Dez e quarenta, ela está atrasada.” Não gostava que ela se atrasasse, tinha sempre medo de que se deixasse morrer. Ela esquecia tudo, fugia de si mesma, esquecia-se sempre, esquecia de comer, esquecia-se de dormir. Um dia se esquecia de respirar e pronto. Dois rapazes tinham parado perto dele; olharam uma das mesas com desdém, num desafio.
- Sit down – disse um.
- Eu sit down – respondeu o outro. Riram e sentaram. Tinham as mãos bem tratadas, a fisionomia dura e a carne tenra. “Só dá chato aqui”, pensou Mathieu, irritado. Estudantes ou ginasianos. Jovens machinhos cercados de fêmeas passadas e que pareciam insetos brilhantes e obstinados. “É engraçada a mocidade”, pensou Mathieu, “por fora rutilante, por dentro não se sente nada”. Ivich cheirava a mocidade. Boris também, mas eram exceções. Mártires da juventude. “Eu não sabia que era jovem, nem Brunet, nem Daniel. Depois é que percebemos.”
Lembrou-se sem grande prazer de que ia acompanhar Ivich a uma exposição de Gauguin. Gostava de mostrar-lhe belos quadros, belas fitas, belos objetos, porque ele próprio não era belo e era sua maneira de se desculpar. Ivich não o desculpava. Hoje como das outras vezes olharia os quadros com seu ar selvagem e maníaco. Mathieu ficaria ao seu lado, feio, importuno, esquecido. No entanto não desejava ser belo; nunca ela estava mais só do que diante da beleza. Refletiu: “Não sei o que quero dela”. Viu-a nesse mesmo instante. Descia o bulevar ao lado de um rapaz alto de cabeleira crespa e óculos. Ela erguia o rosto e lhe ofereceria um sorriso luminoso. Falavam animadamente. Quando viu Mathieu seus olhos se apagavam; disse um adeus rápido ao companheiro e atravessou a Rue dês Écoles como que sonolenta. Mathieu levantou-se.
- Salve Ivich!
- Bom dia – disse ele.
Estava com seu rosto dos dias de festa. Puxara os cabelos louros até o nariz e a franja lhe descia até os olhos. No inverno o vento lhe atormentava os cabelos, despia-lhe as bochechas gordas e lívidas e a testa curta que ela costumava chamar “testa de clamuco”. Um rosto largo surgia pálido, infantil e sensual como a lua entre duas nuvens. Atualmente Mathieu via somente um falso rosto, estreito e puro, que ela usava por cima do verdadeiro como uma máscara triangular. Os jovens vizinhos de Mathieu voltaram-se para olhá-la. Pensavam visivelmente: “Boa garota”, Mathieu contemplou-a com ternura. Ele, somente ele sabia que Ivich era feia. Ela sentou calma e taciturna. Não estava pintada porque a pintura estragava a pele. –
- E para madame? – perguntou o garçom.
Ivich sorriu-lhe. Gostava que a tratassem de madame. Depois virou-se para Mathieu indecisa.
- Tome um Pippermint – disse Mathieu -, você gosta disso.
- Gosto disso? – Divertia-se. – Pois então que vá. Mas que é isso? – Indagou quando o garçom se afastou.
- Menta verde.
- Aquela coisa verde e viscosa que bebi outro dia?
Oh! Não quero não, isso cola na boca. Eu vou deixando que você me conduza, mas não i deveria fazer. Não temos os mesmos gostos.
- Você disse que gosta – atalhou Mathieu contrariado.
- Sim, mas refleti, lembrei-me do gosto. – Estremeceu. – Nunca mais beberei.
- Garçom! – gritou Mathieu.
- Não, não, deixe que ele traga, é bonito. Não beberei eis tudo. Alíás, não estou com sede.
Calou-se, Mathieu não sabia o que dizer. Ivich interessava por tão pouca coisa! E ele não tinha vontade de falar. Marcelle estava ali. Ele não a via, não se referia a ela, mas estava ali. Ivich sim, ela a via, podia chamá-la pelo nome ou tocar-lhe o ombro; mas era inatingível com seu porte frágil e seus belos seios duros. Parecia pintada e envernizada como uma taitiana de Gauguin. Inutilizável. Dentro em pouco Sarah telefonaria. O garçom chamaria: “M. Delarue”. Mathieu ouviria uma voz sombria: “Ele quer dez mil francos, nem um franco a menos”. Hospital cirurgia, cheiro de éter, questões de dinheiro. Mathieu fez um esforço e voltou-se para Ivich. Ela fechara os olhos e passava de leve os dedos sobre as pálpebras. Reabriu os olhos.
- Tenho a impressão de que ficam abertos sozinhos. De vez em quando eu os fecho para que descansem. Estão vermelhos?
- Não.
-É o sol. No verão eles me doem. Em dias como este a gente não deveria sair senão depois de escurecer. Não se sabe onde se enfiar, o sol nos persegue por toda parte. E as pessoas ficam com as mãos úmidas. Olhava Ivich sem se sentir perturbado; achava-se culpado e libertado ao mesmo tempo por querê-la menos.
-Aborreceu-se porque eu a forcei a sair tão cedo?
- De qualquer maneira eu não podia ficar no quarto.
- Por quê? – indagou Mathieu espantado.
Ivich encarou-o com impaciência.
-Você não sabe o que é um Lar do Estudante. Protegem-se as moças de verdade, sobretudo no momento dos exames. E depois a mulherzinha tomou-se de afeição por mim, entra a todo instante no quarto, por qualquer pretexto, me acaricia os cabelos. Tenho horror a que me toquem.
Mathieu mal a ouvia. Sabia que ela não pensava no que dizia. Ivich sacudiu a cabeça irritada.
- Ela gosta de mim porque sou loura. É sempre a mesma coisa. Daqui a três meses vai me detestar. E dirá que eu sou dissimulada.
- você é dissimulada – disse Mathieu.
- Sim... – murmurou ela num tom preguiçoso de voz que induzia a pensar em suas faces lívidas.
- Afinal as pessoas acabam percebendo que você esconde a face e baixa os olhos como uma santinha do pau oco.
- Ora! Você gostaria que soubessem como você é? – acrescentou com certo despreza. – É verdade que não liga para essas coisas. Quando a olhar as pessoas de frente, não posso. Os olhos me ardem logo.
- Você me incomodava a princípio – disse Mathieu.
- Você me olha em cima da testa, à altura dos cabelos. Eu que tenho tanto medo de ficar calvo. Pensava sempre que você tivesse percebido um lugar mais ralo e não pudesse mais despregar os olhos.
- Olho todo mundo assim.
- Sim, ou de lado: assim...
Ele lhe deitou um ar matreiro e rápido. Ela riu divertida e furiosa.
- Pare! Não gosto que me imitem.
- Bom não era muito maldoso.
- Não, mas fico com medo quando você imita minha expressão!
- Compreendo! – disse Mathieu sorrindo.
- Não é o que você imagina, não. Mesmo que você fosse o mais belo rapaz da terra, eu teria medo.
Acrescentou mudando de voz:
Eu quisera muito que os meus olhos não me doescem tanto.
- Escute – disse Mathieu -, vou a farmácia comprar um comprimido. Mas estou esperando um telefonema, se me chamarem diga ao garçom que volto já. Por favor.
- Não, não vá – disse ela secamente. – agradeço, mas não adianta. É o sol.
Calaram-se. “Estou me chateando”, pensou Mathieu com estranho prazer. Um prazer crispado. Ivich alisava a saia com as palmas das mãos, erguendo ligeiramente os dedos como se fosse tocar piano. Suas mãos estavam sempre avermelhadas porque ela tinha má circulação. Em geral ela as mantinha erguidas e as agitava de vez em quando em vez para que empalidecessem. Não lhe serviam quase para pegar, eram dois idolozinhos gastos nas pontas dos braços; roçavam as coisas com gestos miúdos e inacabados e pareciam menos destinadas a segurar do que a modelar. Mathieu olhou as unhas de Ivich, longas e pontudas, excessivamente pintadas, quase chinesas. Bastava contemplar aqueles adornos frágeis e incômodos para compreender que Ivich não podia fazer coisa alguma com seus dez dedos. De uma feita caíra-lhe uma unha, sozinha, ela guardava num pequenino esquife e de vez em quanto a examinava como uma mistura de prazer e horror. Mathieu a vira. Conservara o verniz e assemelhava-se a um besouro morto. “Que será que a preocupa? Nunca foi mais irritante. Deve ser o exame. A menos que se chateie comigo. Afinal de contas eu sou um adulto.”
- Deve começar assim, por certo, quando a gente fica cega – disse de repente Ivich com um ar neutro.
- Por certo não – respondeu Mathieu, sorrindo, - Você sabe o que lhe disse o médico em Laon: um pouco de conjuntivite.
Falava docemente, sorria docemente, sentia-se melado de doçura. Com Ivich era preciso sorrir sempre, fazer gestos suaves e lentos. “Como Daniel com seus gatos.”
- Os olhos me doem tanto – disse Ivich -, basta uma coisa de nada. – Hesitou. – É bem no fundo dos olhos que dói. Não é assim que começa aquela loucura de que me falava há dias?
- Ah! Aquela história? Escute, Ivich da última vez era o coração, você tinha medo de uma crise cardíaca. Que menina esquisita, parece que tem medo de se atormentar. E de repente você declara que é feita de cimento! Escolha.
Sua voz fixava-lhe um gosto de açúcar na boca.
Ivich olhava para os pés, concentrada.
- Deve estar me acontecendo alguma coisa.
-Eu sei – disse Mathieu -, sua linha da vida interrompida. Mas você disse que não acredita.
- Não, não acredito. Mas é que eu não posso imaginar meu futuro. Há uma barragem na frente.
Calou-se e Mathieu contemplou-a em silêncio. Sem futuro... De repente sentiu um gosto desagradável na boca e percebeu que estava demais preso a Ivich com trinta anos. Ivich com quarenta anos, isso não tinha sentido.

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