sábado, julho 03, 2010

“... e ficou a observar-se atentamente, como um aprendiz de químico que misturou um ácido e uma base e agita o tubo de ensaio, não viu muito, é sempre assim se a imaginação não ajudar, o sal que daquilo resultou, já era esperado, tantos são os milênios que andamos misto de misturar sentimentos, ácidos e bases, homens e mulheres. Lembrou-se do alvoroço adolescente com que a olhara pela primeira vez, então a si mesmo insinuou que o moviam simpatia e compaixão por aquela pungente enfermidade, a mãozinha caída, o rosto pálido e triste, e depois aconteceu aquele longo diálogo diante do espelho, árvore do conhecimento do bem e do mal, não tem nada que aprender basta olhar, que palavras extraordinárias teriam trocado de seus reflexos, não pôde captá-las o ouvido, só repetida a imagem, repetido o mexer dos lábios, contudo talvez no espelho, talvez no espelho se tenha falado uma língua diferente, talvez outras palavras se tenham dito naquele cristalino lugar , então outros foram os sentidos expressos, parecendo que, como sombra, os gestos se repetiam, outro foi o discurso, perdido na inacessível dimensão, perdido também, afinal, o que deste lado se disse, apenas conservados na lembrança alguns fragmentos, não iguais, não complementares, não capazes de reconstituir o discurso inteiro, o deste lado insista-se, por isso os sentimentos de ontem não se repetem nos sentimentos de hoje, ficaram pelo caminho, irrecuperáveis, pedaços do espelho partido, a memória. Enquanto desce a escada para o primeiro andar, tremem um pouco as pernas a Ricardo Reis, nem admira, a gripe costuma deixar as pessoas assim, muito ignorantes da matéria seriamos se cuidássemos que esse tremor é efeito dos pensamentos, ainda menos daqueles que laboriosamente aí ficam ligados, não é coisa fácil pensar quando se desce uma escada, qualquer de nós pode fazer a experiência, atenção ao quarto degrau. ”


O Ano da Morte de Ricardo Reis - pg.175

'O Mestre'

José de Sousa Saramago (Azinhaga, Golegã, 16 de Novembro de 1922 — Tías, Lanzarote, 18 de Junho de 2010) foi um escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português.









sexta-feira, julho 02, 2010

A cor do paraíso


                                                                              um filme belíssimo...