sexta-feira, agosto 24, 2007

O Guardião dos Livros

Ai estão os jardins, os templos e a justificação dos templos,
A exata música e as exatas palavras,
Os sessenta e quatro hexagramas,
Os ritos que são a única sabedoria
Que outorga o Firmamento aos homens,
O decoro daquele imperador
Cuja serenidade foi refletida pelo mundo, seu espelho,
De sorte que os campos davam seus frutos
E as torrentes respeitavam suas margens,
O unicórnio ferido que regressa para marcar o fim,
As secretas leis eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou sua memória estão nos livros
Que custodio na torre.
Os tártaros vieram do Norte
em crinados potros pequenos;
Aniquilaram os exércitos
Que o Filho do Céu mandou para castigar sua impiedade,
Ergueram pirâmides de fogo e cortaram gargantas,
Mataram o perverso e o justo,
Mataram o escravo acorrentado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram as mulheres
E seguiram para o Sul,
Inocentes como animais de presa,
Cruéis como facas.
Na aurora dúbia
O pai de meu pai salvou os livros.
Aqui estão na torre onde jazo,
Recordando os dias que foram de outros,
Os alheios e antigos.
Em meus olhos não há dias.
As prateleiras
Estão muito altas e não as alcançam meus anos.
Léguas de pó e sonho cercam a torre.
Por que enganar-me?
A verdade é que nunca soube ler,
Mas me consolo pensando
Que o imaginado e o passado já são o mesmo
Para um homem que foi
E que contempla o que foi a cidade
E agora volta a se;. o deserto.
Que me impede sonhar que alguma vez
Decifrei a sabedoria
E desenhei com aplicada mão os símbolos?
Meu nome é Hsiang.
Sou o que custodia os livros,
Que talvez sejam os últimos,
Porque nada sabemos do Império
E do Filho do Céu.
Aí estão nas altas estantes,
A um tempo próximos e distantes;
Secretos e visíveis como os astros.
Aí estão os jardins, os templos.
Elogio da Sombra

Jorge Luís Borges
24/08/1889
14/06/1986

Um comentário:

Anônimo disse...

Uma vez assisti a um filme de um bibliotecário, cuja paixão maior era a leitura. Daqueles que lêem até bula de remédio. Ele usava óculos, de alto grau. Estava no sub solo exercendo suas atividades, sentiu um tremor, subiu as escadas e foi ver o que ocorria. Havia acontecido a guerra final, nuclear. Ele, finalmente poderia agora voltar a ler seus livros sem interrupção, e na ânsia de descer as escadas, escorregou e quebrou seus óculos. Sózinho no mundo, sem seus óculos, sem enxergar, termina o filme numa metáfora fantasmagórica, com a câmera se afastando daquele rosto desesperado.