quinta-feira, janeiro 18, 2007

Idade da Paixão


3

Gado para o curral. Três andares, surdo tropel conhecido.
O bloco de vidro é um viveiro, na animação de começo de ano, antes que, gás letal, a letargia se infiltre por frinchas e portas, se aposse dos corpos derreados sobre as cadeiras duras de pau.
Um boneco mecânico agita-se na nossa frente, rabisca no quadro. Como criança soprando bolhas de sabão, solta no ar pílulas de conhecimento, que engolimos a contragosto. Já no terceiro horário, Matemática, me digo não agüento mais: e é apenas o primeiro dia. Encarcerado há sete anos – sem contar o primário – em regulamentos, horários, deveres de casa, quero cair na vida.
Certo, haverá o fosso, a fossa, do vestibular. Correndo tudo bem, tenho mais quatro anos, cinco anos conforme a opção, de faculdade à frente. Mas a faculdade não é colégio. A faculdade, ou melhor, a universidade – ó nome pomposo – é um centro de alto saber, um congresso de talentos, assembléia de sensíveis humanistas, laboratório de progresso e criatividade. Os compêndios são alentados; as teorias, um desafio intelectual. Na universidade a imaginação teria um lugar; lá, eu frutificaria, ganharia densidade – além, é claro, do indispensável diploma. O dia da formatura – me fora ensinado – era, ao lado do dia do casamento, o mais feliz e importante de nossa existência.
Ansiado canudo, vinde a mim, salvo-conduto para a ação, após o lento gotejar de anos de espera. Desejo viver; não apenas ver, ouvir, a cidade agitando-se no rumor fabril, enquanto contemplo melancólico seu casario dourar-se aos poucos no sol da tarde. Estes janelões convertem-me em testemunha – quando aspiro é a ser agente da vida.
Armadilhas estão plantadas no caminho desse risonho porvir universitário. Aluno medíocre, 6 ou 7 já sendo nota . Não tenho no íntimo essa certeza, não consigo me imaginar feliz entrando no Fórum, gravata, pasta na mão, para comprar briga de meu constituinte, a quem o vizinho, avanboa, não vá uma segunda época atrapalhar minha libertação. Medo agravado pela responsabilidade de não desperdiçar o dinheiro de meu pai, fazendo-o me pagar pensão, quando eu poderia muito bem ter ficado em nossa casa de Santa Maria.
Inquieta-me também a opção pelo Direito, carreira que meu pai proclama belíssima e para qual me destino por gostar de escrever, de livrosçando a cerca, roubou cinco metros do terreno.
A um palmo do nariz, observo as hastes pontiagudas do capim, descubro que o vejo pela primeira vez, na sua limpa geometria de combate. Isso me distrai, até que em meu aniquilamento me advirto, precisas aprender o mundo.


Extraído do livro "A idade da Paixão", p.33
Rubem Mauro Machado

Prêmio Jabuti de melhor romance em 1986


Este livro que ninguém ficará indiferente, nos oferece instantes de reveladora intimidade, secretamente familiar a todos nós. Retrato de uma época (a ação transcorre em 1961), é porém capaz de transcendê-la como a juventude do personagem principal e de caminhar na direção do futuro, como toda e qualquer vida que reage ao que a oprime; e como toda obra de arte de primeira grandeza.


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