sexta-feira, novembro 17, 2006

Re-leituras

“...Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez o catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, mãos piedosas não faltarão que me tirem pela varanda a fora; minha sepultura será o ar insondável: meu corpo se fundirá dilatadamente e se corromperá e dissolverá no vento originado pela queda, que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argúem que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço. Alegam que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que segue toda volta das paredes; mas seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.) Para mim é suficiente, por ora, repetir o ditame clássico: A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível.
A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta. Também há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas. Sei que essa inconexão, alguma vez, pareceu misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar de suas trágicas projeções, é talvez o fato capital da história) quero rememorar alguns axiomas.
O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o bibliotecário imperfeito, pode ser obra da sorte ou dos demiurgos malévolos, o universo, com sua elegante dotação de prateleiras, de tomos enigmáticos, de escadas infatigáveis para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser criação de um deus. Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trêmulos que minha mão falível garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.
O segundo: O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco. Essa comprovação permitiu, depois de trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjetura desvendara: a natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que meu pai viu no hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava das letras M C V malevolamente repetidas da primeira linha te a última. Outro (muito consultado nesta zona) é um simples labirinto de letras, mas a penúltima página diz Ó tempo tuas pirâmides. Já se sabe: por uma linha razoável ou uma notícia justa, há léguas de cacofonias insensatas, de confusões verbais e de incoerências. (Sei de uma região agreste cujos bibliotecários repudiam o costume supersticioso e vão de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procura-los nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas sustentam que essa aplicação é casual, e que os livros em si nada significam.
Esse ditame, já veremos, não é completamente falso.)..."

Da obra Ficções, conto:A Biblioteca de Babel, pg.74

Jorge Luis Borges (1899-1986) : o - ) escritor, poeta e ensaísta argentino mundialmente conhecido por seus contos.

O livro é uma extensão da memória e da imaginação ........ a leitura é uma forma de felicidade"
Borges : - ) O Livro

Nenhum comentário: