Para construir a paz é preciso uma ética da amizade
Esta expressão, que parece envolver um pleonasmo ou contradição de termos, me veio à mente ao ler algumas citações de Nietzsche sobre a amizade. Esta semana começou com o 14 de fevereiro, consagrado internacionalmente como “dia da amizade”. O mundo atual fala muito de amor, com acertos e, às vezes, com alguma confusão. Raramente fala de amizade. Entretanto, se queremos aprofundar, cada vez mais, uma cultura de paz, um elemento a ser desenvolvido é uma ética da amizade. Por isso, convido vocês a juntos refletir sobre o papel que temos na vida das pessoas amigas; e estas, em nossa vida pessoal. Já contei aqui, mas sempre gosto de recordar que, uma vez, visitando uma comunidade indígena, entrevistei o mais velho do grupo. Ele aceitou responder minhas perguntas e contar algo de sua cultura. Senti que confiou em mim e se abriu. Marcamos um encontro para o dia seguinte de manhã. Já nos despedíamos, quando ele me perguntou:– Aonde vamos nos encontrar?Respondi:– Posso ir à sua casa. Ele me olhou com simpatia, mas me disse sem qualquer tom de censura:– Quando formos amigos, eu o convidarei para entrar em minha casa.Em nossa sociedade, já não há mais ritos nem respeito ao necessário processo para o aprofundamento de uma relação. Há mais de 50 anos, Saint Exupery escrevia “O Pequeno Príncipe”. Nesta parábola que percorreu o mundo, o principezinho dizia à raposa: “O essencial é invisível aos olhos... Cativar é criar laços. Para ser amigo, é preciso cativar. Isso exige tempo. As pessoas querem comprar tudo pronto nas lojas. Como não existe loja de amigos, as pessoas não têm mais amigos”.A fraternidade e o amor ao próximo são propostas universais. Somos todos irmãos e irmãs e devemos nos relacionar como tal. Já a amizade é uma relação privilegiada e particular entre pessoas que se escolhem como companheiros e parceiros de vida. Colegas se encontram, por acaso, ao estudarem na mesma classe ou trabalharem na mesma firma. Companheiros e camaradas se fazem em torno de uma causa comum. Às vezes, colegas e companheiros se tornam amigos. Mas, este é um processo livre e gratuito. Amigos se elegem para uma aliança de vida que toca verdadeiramente na interioridade de cada um, expressa-se pelo acolhimento interior um do outro e se exercita na capacidade de convívio entre pessoas diferentes. Qualquer pessoa que conhece melhor outra tende a construir logo pontos de identificação comum. “Você é de tal região. Eu também. Temos os mesmos gostos. Sobre tais e tais pontos, temos o mesmo pensamento”. Este caminho é natural, mas é enganoso. Quem entra neste jogo, logo descobre que cada pessoa é radicalmente diferente da outra. Não adianta buscar um mínimo-denominador-comum. Mesmo se há pontos de semelhança, o que pode me aproximar de você com mais profundidade e sinceridade não é o fato de que somos, em muitas coisas, semelhantes e sim a plena aceitação das diferenças, assumidas, não apenas como um respeito distante e sim como um compromisso de caminhar juntos, sabendo que as diferenças podem nos dividir, mas podem também (e isso é a tarefa da amizade) nos unir e permitir que façamos juntos, como dizia alguém: “coisas belas e difíceis”.O segredo da amizade é tornar as pessoas capazes de se sentir unidas uma à outra, não a partir das igualdades e pontos em comum, mas exatamente das diferenças mútuas. Sobre este assunto, os textos que, ultimamente mais me impressionaram são citações de importantes obras de Friedrich Nietzsche. Ele critica a idéia comum de que o amor conjugal seja direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra e denuncia esta pulsão das pessoas quererem se apropriar da outra em nome do amor. Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa também se queixa desse sentimento: “Não só quem nos odeia ou nos inveja nos limita e oprime. Quem nos ama não menos nos limita”. Nietzsche chega a dizer que, na sociedade vigente, o amor sexual é a expressão mais natural do egoísmo humano. De repente, pondera: “Existe no mundo, aqui e ali, uma espécie de dominação do amor, na qual a ambiciosa ânsia que duas pessoas têm uma pela outra dá lugar a um novo desejo e cobiça, a uma elevada sede conjunta de um ideal acima delas. Mas, quem conhece tal amor? Quem o experimentou? Seu verdadeiro nome é amizade” (A Gaia Ciência, I, 14). “A verdadeira amizade nasce quando se tem o outro em grande estima, maior do que a que temos por nós mesmos. Aí procuramos amar, cuidando prudentemente de não cair em uma intimidade que possa ser invasiva e chegar a confundir o eu e o tu” (Humano demasiadamente humano, II, 1).De fato, não existe possibilidade de desenvolver um eu sem o tu. Emanuel Levinas chega a dizer que é o outro que me restitui a mim mesmo e me possibilita ser eu. Por isso, é importante que a amizade não ceda à ânsia natural da identificação, da fusão, da confusão entre o tu e o eu. Martin Buber afirma: “Eu não experiencio o ser humano a quem digo Tu. Entro em relação com ele no santuário da palavra-princípio”. Relações afetivas nas quais as pessoas se tornam emocionalmente dependentes uma da outra e parece que cuidam de manter esta dependência – seja emocional, sexual ou mesmo apenas intelectual – são, de qualquer forma, relações. Podem ser passos que ajudam as pessoas a saírem do seu isolamento selvagem e o seu medo de relacionar-se. Entretanto, se quiserem se tornar verdadeiras e profundas amizades, têm de descobrir o caminho da alteridade, o respeito amoroso da distância mútua, da autonomia fundamental de cada um. Essa arte de fazer acordos na discordância e poder sentir-se unidos nas diferenças é uma dimensão de descoberta do outro e de educação afetiva que possibilita o caminho comum. Mesmo casais e pessoas que vivem o compromisso do amor conjugal ganhariam em assumir o fato de que entre um ser humano e outro, mesmo o mais íntimo e próximo, existe uma distância infinita que não pode ser escamoteada e só será verdadeiramente transposta através de pontes e alianças sinceras e não de transferências afetivas e conquistas baratas. Talvez alguém, lendo esta reflexão, pense que amizade é uma coisa complicada. De fato, como dizia o Riobaldo do “Grande Sertão Veredas”, “viver é muito complicado”, mas vale a pena o esforço porque quem consegue aprofundar este caminho da amizade pode confirmar: é uma alegria imensa, um prazer que nenhum filósofo será capaz de descrever. Nos “Provérbios do Inferno”, diz William Blake: “O pássaro, um ninho; a aranha, uma teia, o ser humano, a amizade”. Para mim e para muita gente, o caminho do aprofundamento da amizade é uma opção espiritual. Para os cristãos, Jesus Cristo é mediador da nossa relação com Deus e também das nossas relações de amizade. Ele nos faz descobrir o rosto divino presente no outro; e esta outra pessoa (o amigo) nos ajuda a aprimorar e viver com mais intensidade o melhor que existe dentro de nós mesmos.
Esta excelente matéria é de autoria de Marcelo Barros, ele é monge beneditino, escritor e teólogo brasileiro, extraída da ADITAL Agência de Informação Frei Tito para a América Latina.
2 comentários:
Como disse Vinicius, amigo se elege. Para ser amigo é necessário...transparencia, honestidade, presença, confiança, cumplicidade. Verdade de propósitos. Amigos verdadeiros existem sim, são raros mas existem. A verdadeira amizade não tem cor, sexo, religião, idade. E ela tem que estar sempre presente,pessoal ou virtualmente. Tem de ser aberta e sincera. Eu sou esse seu amigo...voce que não percebeu ainda...
amizade é um negócio muito sério para ser tratado em convenções, mas não vou fazer que nem o índio, não preciso te convidar a nada, meu coração já tem voce como amiga...
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